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Paradoxo: Capítulo 03

A manhã seguinte chegou com um céu acinzentado e pesado, refletindo bem o humor de Júlia. Ela entrou no escritório já preparada para mais um dia de provocações veladas e debates desgastantes com Lucas. As portas de vidro da editora Palavra Vivia brilhavam com a luz suave do início do dia, mas ela não tinha tempo para admirar a vista. O foco estava em começar a curadoria dos autores emergentes, e o simples pensamento de ter que decidir algo com ele já a deixava tensa.

Quando chegou à sala de reuniões, ele estava lá novamente, como se tivesse saído da sala apenas algumas horas antes, imperturbável. Sentado à mesa, com os óculos de leitura equilibrados no nariz, ele analisava uma pilha de manuscritos com uma concentração que ela não esperava.

Ela fechou a porta com mais força do que pretendia, chamando a atenção dele. Ele ergueu o olhar, seus olhos brilharam com um misto de diversão e curiosidade.

— Atrasada, de novo — ele comentou sem tirar os olhos dos papéis, a mesma provocação sutil do dia anterior.

Ela ignorou o comentário, pousando seus próprios materiais sobre a mesa.

— Vamos ser objetivos. Temos muito o que fazer hoje.

Ele a olhou de relance, levantando uma sobrancelha como se dissesse você não precisa me dizer isso.

— Concordo — ele disse calmamente, empurrando um dos manuscritos na direção dela. — Já dei uma olhada nesse aqui. Pode ser interessante para abrir a antologia.

Ela pegou o manuscrito, examinando a capa com uma expressão crítica. Os dedos dele roçaram os dela por um breve instante ao entregar o documento, mas ela rapidamente retirou a mão, sem reconhecer a sensação estranha que percorreu sua pele. Concentrou-se em seu trabalho.

— Parece promissor, mas é muito moderno — ela disse após ler o resumo. — O público da Palavra Vivia prefere algo mais clássico.

Ele sorriu, como se estivesse esperando por aquela resposta.

— Você realmente acha que nosso público não quer algo novo? Precisamos inovar. A antologia é uma oportunidade para isso. — Ele ajustou os óculos, inclinando-se para frente. — Ou vamos continuar oferecendo a mesma coisa de sempre?

Ela o encarou, sentindo a tensão crescer entre eles.

— Não se trata de oferecer a mesma coisa — respondeu com calma, mas os olhos dela denunciavam a irritação. — Trata-se de respeitar as raízes da editora. Temos uma reputação a zelar. Arriscar demais pode nos custar caro.

Ele se recostou na cadeira, estudando-a por um momento.

— Talvez a editora precise se arriscar um pouco mais.

A discussão seguiu assim, cada um defendendo suas ideias com fervor. O tom de voz foi ficando mais intenso conforme as horas passavam, até que a frustração de ambos se tornou evidente. Eles falavam em cima um do outro, sem dar espaço para o outro terminar as frases. Era como se ambos estivessem tentando impor sua visão não apenas sobre o projeto, mas sobre o que a própria editora deveria ser.

Júlia finalmente perdeu a paciência e bateu com a mão na mesa.

— Você não pode simplesmente ignorar o que foi construído aqui! — A voz dela ecoou pela sala, e ela imediatamente se arrependeu de ter se exaltado tanto, mas agora não havia mais volta.

Ele a observou em silêncio por um momento, como se estivesse tentando decifrar sua reação, mas o sorriso provocador desaparecera.

— E você não pode ter tanto medo de mudanças — ele respondeu em um tom mais baixo, mas carregado de intensidade. — Não se constrói nada novo sem correr riscos.

A sala de reuniões ficou em um silêncio tenso. Ambos estavam ofegantes, não pelo cansaço físico, mas pela batalha mental e emocional que aquela troca de palavras representava. O olhar dele, embora mais calmo agora, continuava desafiador, enquanto ela ainda tentava controlar a raiva que a dominara.

Finalmente, ela pegou o manuscrito que ele havia sugerido e jogou de volta na mesa entre eles.

— Tudo bem. Vamos incluir este autor — ela disse, em uma tentativa clara de encerrar a discussão. — Mas você também vai ter que ceder em algum ponto, ou isso não vai funcionar.

Ele sorriu levemente, dessa vez sem sarcasmo, quase... admirado?

— Justo — ele disse simplesmente, como se estivesse satisfeito em ver que ela estava disposta a abrir mão de algo.

Ela ficou surpresa com a rapidez com que ele aceitou o acordo, e isso a fez questionar se não estava caindo em alguma armadilha. Mas decidiu deixar essa preocupação para depois.

Enquanto pegava outros manuscritos para revisar, ela o observou pelo canto do olho. Havia algo nele que a desconcertava. Ela ainda o considerava arrogante e competitivo demais, mas, ao mesmo tempo, ele parecia genuinamente apaixonado pelo trabalho. Essa paixão era algo que ela não esperava encontrar nele, e, de certa forma, a deixava desconfortável.

O resto do dia passou sem grandes confrontos, mas a tensão entre eles não diminuíra completamente. Agora, porém, havia uma nova camada de respeito mudo. Talvez eles pudessem trabalhar juntos afinal. Mas ela ainda não estava pronta para baixar a guarda.

Ao final do dia, enquanto ele saía da sala, ele lançou a ela um último olhar.

— Até amanhã. Não se atrase dessa vez — disse com um sorriso meio travesso.

Ela revirou os olhos, mas, dessa vez, um pequeno sorriso também escapou de seus lábios.

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