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Sussurros da Escuridão (2024)

Após não ser convidado para o batizado da princesa Celeste, o feérico da escuridão, Erethon, visita a criança em uma noite e lança uma maldição sussurrada: em seu aniversário de 18 anos, a jovem se perderia na floresta sombria para sempre e só poderia ser resgatada se o amor verdadeiro a encontrasse antes do sol se pôr.

Mas o que Erethon não sabia, era que quando o tempo chegasse, o feitiço se viraria contra ele, da forma mais surpreendente e inesperada possível.



Erethon observava tudo, escondido nas sombras da varanda do castelo. Ele não foi convidado para o batizado da princesa.

Mas por que seria? Um feérico da escuridão jamais seria bem-vindo em um evento tão alegre como o batizado de uma criança. Mas isso não fazia com que ele se sentisse menos ofendido.

Ele ouviu quando o rei e a rainha puseram a princesa para dormir e então deixaram-na sozinha. Que tipo de pais deixam a bebê recém nascida em um quarto sozinha?

O feérico abriu lentamente as cortinas e voou até dentro do quarto. Seus olhos brilhavam no escuro, como os de uma fera prestes a atacar sua presa na escuridão.

Se aproximando do berço, Erethon sorriu levemente ao ver a princesa. Mas era um sorriso carregado de sadismo.

— Oi, ratinha… — sussurrou, enrolando um fio de cabelo da menina em seu dedo — Uma pena que não pudemos nos conhecer. Seus pais não me convidaram. Mas também… que festinha estúpida não é? Você dormiu o tempo todo.

A garotinha murmurava em um sono profundo. Qualquer um acharia aquela visão adorável, mas Erethon não era muito chegado a crianças.

— Seus pais querem te proteger da escuridão… mas a escuridão está em você, pequena. Ela está em todos os lugares, até nos mais iluminados. Você descobrirá isso mais cedo ou mais tarde… na verdade, esse será o meu presente para você.

O rapaz usou sua magia e uma luz roxa saiu de sua mão, cercando a bebê por todos os lados.

— No seu aniversário de 18 anos, a escuridão te tentará. Você vai se perder na floresta sombria e não achará o caminho de casa…

Erethon suspirou, antes de continuar.

— A menos que o amor verdadeiro, te mostre o caminho de volta para a luz, antes que ela se vá, essa maldição que coloco sobre você… é inquebrável. E eu te garanto, ratinha… seus pais não vão te salvar.

Com isso, Erethon deixou o quarto da menina, voando de volta para a escuridão.

***

Os anos se passaram, e a princesa Celeste cresceu. Ela se tornou uma jovem bela e amável. Não havia nenhuma pessoa ou criatura que não se encantasse por ela.

Os feéricos que foram ao seu batizado a abençoaram com beleza, inteligência, gentileza e força interior. Aquelas eram qualidades que podiam ser vistas na princesa, do fio de cabelo ao dedinho do pé. Ela era maravilhosa, em todos os sentidos.

Mas havia algo nela que ela não conseguia descrever. Ela sentia uma conexão inexplicável com a noite. Seu sono era leve, e ela acordava com o barulho das corujas chirriando. Esse barulho sempre a fazia se levantar e abrir suas cortinas, mesmo quando seus pais a alertavam para nunca abrir os olhos à noite.

“Continue a dormir, Celeste. Não importa o que aconteça, não abra os olhos a noite”, eles diziam, mas ela sempre abria os olhos. Não conseguia evitar. A noite era belíssima. Não devia ser temida daquela maneira.

Mas todas as noites antes de dormir, ela ouvia um sussurro. Uma voz grave fazia os pelos de sua nuca se arrepiarem, e ela tinha certeza de que havia alguém em seu quarto. Ela podia sentir. E apesar de tentar chamá-lo várias vezes, ele nunca apareceu. Talvez nunca estivesse lá.

Em seu aniversário de 18 anos, aconteceu exatamente como Erethon determinou: a princesa, curiosa, se afastou de sua família e adentrou a floresta escura. Mas ela não estava com medo. A escuridão parecia que a puxava cada vez mais para dentro da floresta. E a escuridão era linda. Ela conseguia ver estrelas, mesmo quando estava de dia do outro lado.

Enquanto caminhava, de repente, ouviu um barulho. Um bater de asas, e uma presença fria, mas, ao mesmo tempo… familiar.

Virando de costas, não viu nada, apenas as folhas das árvores se mexendo contra o vento. Mas, ao dar um passo para trás, suas costas bateram contra algo… Ou melhor, alguém.

— Oi, ratinha.

A voz que sussurrou tão próxima a seu ouvido a fez estremecer. Um arrepio percorreu seu corpo e ela não se mexeu. Ele estava muito perto.

— Como você cresceu… — sussurrou, deslizando o dedo pelo cabelo loiro dela.

Quando sentiu que ele se afastou um pouco, ela se virou para vê-lo. Ele era pálido, todo trajado em trevas e seus olhos eram frios, ao mesmo tempo que queimavam como uma chama. Ela engoliu em seco.

— Você…

— Ah! Então sabe quem eu sou?  — Erethon começou a caminhar em círculos ao redor dela, sua capa preta fazendo barulho na grama enquanto deslizava pelo chão.

— Você sussurrava para mim… todas as noites, era você quem eu escutava quando abria os olhos.

— Oh, claro… os ecos da noite em que nos conhecemos. — respondeu sarcástico.

— Você me amaldiçoou. — ela constatou.

— Sim. Amaldiçoei.

— E o que quer comigo? Quer que eu seja sua prisioneira?

Erethon começou a rir e parou bem em frente à garota.

— De forma alguma! — disse com sarcasmo — o que quero é fazer seus pais sofrerem. Veja bem… se até o pôr do sol eles não te resgatarem, você ficará presa aqui comigo… para sempre. — ele sussurrou a última parte, os lábios quase encostando no ouvido dela. — Ouviu bem, ratinha?

Celeste engoliu em seco, encarando os olhos azuis-escuros de Erethon.

— Perfeitamente. — sussurrou de volta, tentando não demonstrar o quanto estava assustada.

— Muito bem. Fique à vontade, princesa. Veremos se o amor verdadeiro dos seus pais realmente poderá te salvar de mim.

Com isso, Erethon desapareceu na escuridão, deixando Celeste sozinha.

***

O feérico estava em seu trono de sombras, quando ouviu um choro baixo. 

Celeste…

Isso o fez revirar os olhos. Ele não se mexeu. O choro ficou mais alto.

A contragosto, ele se levantou e foi até ela. Ela estava toda encolhida no chão, chorando e abraçando os joelhos. A visão despertou algo nele que ele não esperava, mas tentou se manter frio.

— Você chora muito alto. — resmungou.
Celeste o encarou com os olhos inchados, cheios de lágrimas. Já estava de tarde e em breve o sol iria se pôr… e nem sinal dos seus pais.

— Sinto… falta deles. — ela choramingou — você não tem família, não sabe o que estou sentindo.

— Ora, claro que sei! Por que acha que vivo sozinho nessa floresta?

— O que quer dizer? — seus olhos inchados brilhavam de curiosidade.

— Eu… fui rejeitado pelos outros feéricos. Não sou bem-vindo entre eles.

Celeste se levantou lentamente e se aproximou de Erethon, com compaixão no olhar.

— Sinto muito…

— Não sinta. — disse rispidamente. — É melhor assim.

Ela assentiu.

— É claro… acho que minha família também não me ama. Eles não vieram atrás de mim. E logo, logo… estarei condenada a viver aqui para sempre.

O jeito que ela falava deixou Erethon se sentindo mal pelo que fez, por um instante. Ele não estava acostumado a se sentir daquela maneira.

— Acho que nós dois somos mais parecidos do que eu pensava — Celeste comentou, se aproximando mais de Erethon. — Talvez… não seja tão ruim ficar aqui com você, Erethon.

Celeste olhou para Erethon com uma intensidade que o fez desviar o olhar por um instante. Havia algo diferente na maneira como ela o encarava — não era mais medo, nem tristeza, mas algo mais suave, mais quente.

Ela respirou fundo e deu mais um passo à frente, agora tão perto que ele podia sentir o calor de sua pele contrastando com o frio que sempre o envolvia. Erethon não se moveu, sua expressão era uma mistura de surpresa e hesitação. Ele, que sempre teve controle sobre a escuridão, se viu incapaz de controlar o que estava acontecendo dentro de si.

— Erethon… — ela sussurrou, sua voz quase um sopro, mas carregada de algo que ele não esperava. Seus olhos fixos nos dele, cheios de uma curiosidade que parecia desafiá-lo a afastar-se.

Antes que ele pudesse reagir, Celeste se inclinou, e seus lábios tocaram os dele em um beijo delicado, quase hesitante, como se testando os limites daquele gesto. Por um instante, Erethon ficou imóvel, surpreso demais para responder. Então, como se uma faísca tivesse acendido algo profundo em seu peito, ele retribuiu o beijo.

O toque suave rapidamente se transformou em algo mais urgente, uma mistura de emoções que ele não sabia que conseguia sentir. Erethon a puxou para mais perto, envolvendo-a com seus braços, enquanto o calor da conexão entre eles crescia. Era uma batalha silenciosa entre luz e escuridão, e pela primeira vez em sua existência, ele não sabia qual lado queria que vencesse.

Celeste se afastou levemente, o rosto corado e os olhos brilhando com esperança e confusão. Ela olhou para Erethon, mordendo o lábio inferior, como se estivesse processando o que acabara de acontecer.

— Eu não sei o que isso significa — ela confessou, sua voz trêmula. — Mas talvez…, talvez eu não esteja tão perdida assim.

Erethon, ainda a segurando pela cintura, olhou para ela com uma expressão que parecia vulnerável, quase humano. Algo dentro dele havia mudado, e pela primeira vez em séculos, ele não sentia que a escuridão era sua única companhia.

— Você é perigosa, ratinha — ele disse, a voz mais baixa, mas com um toque de admiração que ele não conseguiu esconder. — Está brincando com algo que nem eu sei controlar.

Celeste sorriu, um sorriso pequeno, mas sincero, e colocou a mão sobre o peito dele, sentindo o coração que ele fingia não ter, bater mais rápido do que o esperado. 

— Talvez eu não precise ser salva da escuridão, Erethon. Talvez eu só precise de alguém que me mostre que ela pode ser bonita também.

***

Quando o sol estava se pondo, Celeste abriu os olhos. Erethon dormia tão pacificamente que ela estranhou. O ser da escuridão que a amaldiçoou parecia apenas um rapaz, dormindo após séculos sem descanso.

Mas ela não tinha tempo a perder. Se levantou e começou a correr pela floresta, torcendo para que seu plano tivesse dado certo.

A princesa encontrou uma trilha de vaga-lumes, que voavam em direção à luz. O sol estava se pondo.

Ela sorriu levemente e começou a seguir os vaga-lumes, até que a escuridão da floresta se unisse ao pôr do sol e ela encontrasse finalmente a luz. Celeste respirou fundo, sentindo-se liberta. Não havia mais aquela tentação, aquele desejo incontrolável de perseguir as sombras.

Ela se virou para a entrada da floresta, e sussurrou, sabendo que, de alguma forma, ele a ouviria, do mesmo jeito que ela o ouviu por 18 anos.

— Você estava certo, Erethon. Eu sou perigosa.

***

Erethon acordou e imediatamente sentiu a ausência de Celeste. Procurou por toda a floresta, mas não havia sinal dela. De repente, começou a ouvir a voz da princesa e soube o que aconteceu. O feérico começou a rir, sadicamente.

Ela quebrou a maldição sozinha. E o usou para conseguir. O amor verdadeiro que a salvou, não era o do seus pais, muito menos aquela farsa que criou entre os dois. E sim, o amor que ela mesma tinha pela sua vida e sua liberdade, que lhe deu coragem para enfrentar Erethon, deixando-o vulnerável a ela por alguns instantes. Ela foi mais esperta do que a maldição. Mais esperta do que ele.

Erethon a subestimou.

— Você me enganou dessa vez, ratinha… mas isso ainda não acabou. — declarou, com um sorriso travesso no rosto, voltando a se perder na escuridão de sua floresta.


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