Quando crianças, à beira de um rio cheio de promessas, Kevin pede à irmã Maddie que permaneça “dourada”. Anos se passam, e a vida rouba de Madeleine a leveza da infância, deixando para trás apenas a sombra de uma promessa incompreendida. Presa às expectativas e sufocada pela própria existência, ela anseia por resgatar a si mesma em meio à névoa do passado.
(Inspirado na música Madeleine, dos Backstreet Boys)
— O que está fazendo, Maddie? — perguntou Kevin, sentando-se ao lado da irmã mais nova que observava os navios partirem no rio que havia ao redor da casa onde eles moravam.
— Estou tentando desenhar aqueles navios, mas mal consigo vê-los!
Kevin riu e colocou a irmã em seus ombros.
— Melhor assim?
— Muito melhor, obrigada!
Alguns minutos se passaram e Kevin sentiu que Maddie não desenhava mais. Mesmo assim, decidiu deixá-la onde estava.
— Kevin, para onde você acha que esses navios vão?
— Eu não sei, pequena. Eles vão para lugares diferentes, é difícil saber.
— Será que eles vão encontrar um tesouro? Ou talvez… talvez uma terra perdida! O que acha que teria lá, Kevin? Aposto que teriam sereias!
— Ah, com certeza, Maddie. O que mais você acha que eles encontrariam? — perguntou, agora colocando a irmã no chão e se sentando em um banco enquanto ela ficava de pé na frente dele. A garotinha levou uma mão ao queixo como se estivesse pensando sobre algo muito sério.
— Hum… piratas! Piratas, com espadas e uma prancha, e muitos tesouros roubados! Eles não iriam querer dividir nada com outras pessoas.
— Certamente.
Kevin sempre sorria com a imaginação fértil e o otimismo da irmã, e isso era algo que ele desejava que a vida nunca tirasse dela como havia tirado dele uma vez, há muitos anos.
— Será que um desses navios é comandado por uma capitã? Eu queria ser capitã de um navio, Kevin, eu contaria muitas histórias!
— Tenho certeza que seriam histórias emocionantes! Capitã Maddie, desbravando os sete mares!
— E você podia ser meu imediato!
Kevin ergueu uma sobrancelha.
— Onde você aprendeu essa palavra?
— Em um livro! Mas e aí, Kevin, você seria meu imediato? Por favor, por favor!
— Isso é pergunta? Claro que eu seria!
Kevin fez cócegas na irmã e depois colocou-a no banco ao seu lado. Eles observaram o pôr do sol juntos, Maddie se apoiando no irmão enquanto sentia o sono chegar.
— Vou sentir sua falta…
Kevin olhou para ela e suspirou.
— Também vou, pequena. Mas a faculdade não dura muito tempo, eu voltarei logo. Até lá, quero que me prometa uma coisa.
Maddie olhou para cima, seus olhos enormes esperando para ouvir o que ele diria.
— Permaneça dourada.
Maddie franziu a testa.
— O que isso quer dizer?
Kevin sorriu levemente e segurou a mãozinha da irmã.
— Você vai entender daqui a uns anos.
Os dois continuaram ali, vendo o sol sumir até a escuridão chegar e os navios partirem.
***
Dez anos se passaram e Madeleine nunca entendeu o que significava permanecer dourada, e Kevin nunca a explicou. Mas também, que oportunidade ele teria para fazer isso agora que era a vez dela partir?
Ela não queria ir. Seu coração palpitava de ansiedade, medo e raiva. Estranhamente, no dia anterior ela estava com uma boa expectativa, mas suas emoções eram instáveis e constantemente criavam atrito entre ela e os membros de sua família.
O colegial foi um pesadelo e agora a pressão para ir à faculdade a sufocava. Sentia que desde que seu irmão foi embora de casa, sua infância foi roubada. Seus pais eram muito exigentes com suas notas, que por muitos anos foi sua única forma de validação. Enquanto seus amigos brincavam lá fora, ela ficava em casa, fazendo lição de casa e se preparando para as provas, para manter sua posição de melhor da turma.
Na adolescência, enquanto seus amigos do colegial se aventuravam e ficavam independentes, Madeleine se isolava mais a cada dia que se passava. Seu fracasso acadêmico foi motivo de muitas brigas e de um diagnóstico severo de depressão. As emoções reprimidas se manifestavam em lágrimas que surgiam à meia-noite, sem razão aparente.
Maddie não sabia mais o que queria para a sua vida. Se sentia uma pessoa sem identidade, sem ambições, sem liberdade. Somente sonhos… sonhos sufocados de recuperar tudo isso que havia perdido em certo momento, mas que era incapaz de se lembrar quando.
— Madeleine, o Kevin está chegando com seu pai, vamos esperar lá embaixo.
Sua mãe mal disse em sua porta e já saíra de novo. Maddie suspirou e foi até o andar de baixo. Ficou lendo um livro de fantasia que havia começado algumas semanas atrás enquanto sua mãe olhava algo no celular.
— Você leu o arquivo que lhe mandei sobre a faculdade?
— Li — respondeu com um suspiro.
— Seria bom se você já começasse a estudar os conteúdos base, para já chegar na frente. Isso é importante para o networking…
— Tá bom, mãe.
— Você sempre diz isso, mas só fica lendo essas coisas. O tempo está passando, Madeleine, você precisa amadurecer.
Maddie fechou o livro bruscamente e o colocou no sofá. Ela não teria aquela conversa de novo.
Antes que elas começassem a discutir de novo, a porta da frente foi aberta, revelando o pai de Madeleine e…
— Kevin!
A garota correu em direção ao irmão mais velho, fechando os braços ao redor dele em um forte abraço. Desde que ele saiu de casa, ela só o viu por chamadas de vídeo.
— Maddie! Como você cresceu!
O cumprimento caloroso dos irmãos era muito diferente da polidez fria que havia com os pais. Kevin passou a viagem de carro com o pai tentando saber sobre as coisas da família, mas o pai só queria falar de trabalho e oportunidades, pessoas importantes que ele queria que Kevin conhecesse… não havia começado bem.
A família ficou na sala de estar, e Madeleine ficou todo o tempo ao lado do irmão, mas assim que sentiu que a conversa iria refletir nela e nas expectativas colocadas em cima dela, decidiu sair da casa com a desculpa de que ia “ver o pôr do sol”.
Ela se sentou do lado de fora, e observou o rio, como costumava fazer em sua infância. Havia menos navios do que antes, mas ainda estavam lá. Ao fechar os olhos, tentou esvaziar sua mente e relaxar, mas as lágrimas simplesmente caíram. Maddie não sentia nada naquele momento, mas as lágrimas caíram assim mesmo, no automático. Ela respirou fundo e tentou contê-las.
Alguns minutos depois, sentiu a presença do irmão se aproximando. Kevin se sentou ao seu lado e ficou um tempo em silêncio antes de falar.
— Lembra de quando a gente sentava aqui para olhar os navios? Eu te colocava nos meus ombros para você ver melhor e você se perguntava para onde eles iam.
— Não gosto muito de lembrar disso — ela confessou.
— Por que não?
— Não sei. Pensar na infância me deixa…
— Triste?
— Não. Com raiva. Eu… eu não sei mais sentir tristeza, Kevin. Parece que tudo é demais para mim, eu sempre me expresso com raiva. Nossos pais dizem que sou descontrolada e sempre querem que eu cale a boca e escute, ou que pare de ser tão reativa… e eu não consigo. Tento demais, e não consigo. E agora, ao mesmo tempo que preciso da liberdade, eu tenho medo dela. Já sou adulta, ninguém entende porque eu simplesmente não tomo as minhas decisões, mas não é fácil quando você é criado dessa forma.
Kevin a ouviu com atenção, sem interrompê-la em momento algum. Ele assentiu e sentiu lágrimas se formando em seus olhos.
— Entendo isso melhor do que ninguém, irmãzinha — ele respirou fundo antes de continuar. — Sabe o que eu quis dizer quando te pedi para permanecer dourada?
— Não. Nunca consegui entender.
— Vi isso em um livro do ensino médio. Maddie, permanecer dourado é não mudar, não perder a sua essência. Permanecer fiel a quem você é, mesmo em meio a dificuldade. Mas o próprio poema já dizia que nada que é dourado permaneceria. Algo roubou suas lágrimas e seu sorriso nesses últimos anos, não foi?
Maddie assentiu com a cabeça. Seus olhos estavam vermelhos das lágrimas que tentava segurar.
— Não pude cumprir a promessa. Eu não só não permaneci fiel a mim mesma, como eu me perdi completamente, Kevin. Eu não sei mais como viver.
— Eu passei pela mesma coisa. Naquele dia em que sentamos aqui, antes de eu ir embora, eu estava sentindo o mesmo que você está sentindo agora. Medo, raiva, frustração, insegurança e a sensação de que havia me perdido no meio do caminho. Mas fui assim mesmo. Porque eu sabia que se eu não fosse, ficaria preso nesse mesmo ciclo para sempre.
— E você está feliz?
— Estou. O sol nasceu de novo para mim, Maddie. E vai nascer de novo para você também.
Madeleine sorriu e encostou a cabeça no ombro do irmão mais velho.
— E se não der certo?
— E se der? Sei que você vê uma floresta negra diante de si, mas não sabe que talvez, em meio a escuridão, você pode encontrar outros campos… campos…
— Dourados — ela completou. — Minha liberdade e identidade de volta. — disse com esperança na voz. — Seria perfeito.
— E será. Você vai ver.
Kevin se levantou e estendeu a mão para a irmã.
— Levante-se, Madeleine. O sol está nascendo.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— O sol está se pondo, Kevin.
— Isso depende de qual parte do mundo você está.
Ele deu uma piscadela e voltou a caminhar em direção à casa. Madeleine sorriu consigo mesma.
Então se levantou, pensando somente nos campos dourados que a aguardavam nas próximas semanas.
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