Nunca gostei de disciplinas inquestionáveis. Sempre me causou desconforto a ideia de que certas áreas do saber exigem aceitação cega — como se pensar diferente fosse um erro. Fórmulas matemáticas que não admitem exceção, teorias físicas que tratam o universo como uma equação fechada, abordagens históricas que ignoram o contexto para impor uma única leitura... Foi justamente por isso que encontrei abrigo na Literatura.
A Literatura é, por natureza, uma provocação. Ela apresenta o mundo através de múltiplas vozes — muitas vezes contraditórias, incômodas e complexas. Em vez de oferecer respostas prontas, ela nos ensina a formular perguntas melhores. Ao invés de buscar exatidão, ela nos convida ao aprofundamento. A leitura literária exige interpretação, empatia, escuta e, principalmente, a coragem de lidar com o que não se entende de imediato. E foi esse olhar — esse hábito de escavar sentido — que transformou também a minha forma de ler a Bíblia Sagrada.
A Bíblia é, sim, a inquestionável Palavra de Deus. Mas isso não significa que devamos lê-la de maneira passiva ou automática, como quem recita um manual técnico. A fé não anula o pensamento; ela o exige. Deus não se ofende com as perguntas sinceras — Ele as acolhe. Ele quer que seus leitores busquem, confrontem, reflitam. A Bíblia é viva, e por isso exige humildade. Porque você pode ser o maior teólogo do mundo, mas nunca terá todas as respostas. A menos que procure. E ainda assim, mesmo procurando, sempre haverá algo novo a ser encontrado. A Palavra é inesgotável.
É aqui que a Literatura e a fé se encontraram no meu caminho. Questionar, longe de ser um ato de rebeldia, pode ser um sinal de fé viva. C.S. Lewis, em Cartas de um Diabo ao seu Aprendiz, revela com brilhantismo como o inferno prefere cristãos passivos, distraídos, preguiçosos. Não é preciso fazer ninguém se tornar ateu — basta mantê-lo espiritualizado o suficiente para parecer devoto, mas superficial o bastante para nunca mergulhar de verdade.
Foi também nesse caminho de leitura profunda que O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ganhou um papel inesperado — e essencial. Esse foi meu livro favorito durante a graduação, tema do meu TCC, e curiosamente continua “aparecendo” para mim em várias situações cotidianas, mesmo tendo sido escrito no século 19. Wilde, que muitos julgariam incompatível com a fé, captou com precisão assustadora um drama espiritual muito atual: o desejo de preservar a imagem limpa enquanto a alma apodrece em silêncio.
Dorian vive o dilema moderno: quer viver tudo, sentir tudo, experimentar tudo — mas sem consequência. Troca sua alma pela aparência intacta, enquanto seu retrato escondido absorve o peso de sua corrupção. Exagero? Nem tanto. Basta olhar ao redor. Quantos hoje constroem cuidadosamente a própria imagem — nas redes, nas palavras, na estética da espiritualidade — enquanto fogem do confronto real com Deus? Quantos romantizam uma versão “inspiradora” de Jesus, mas ignoram completamente o que Ele de fato disse?
Jesus foi claro:
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” (Mateus 16:24) — e não, Ele não estava apenas fazendo um comentário contextualizado para um grupo específico no século I, como alguns gostam de argumentar para suavizar o peso da renúncia. Esse mandamento é direto, atemporal e inegociável.
Mas, claro, muitos o evitam — tanto os que dizem amar Jesus, quanto os que juram segui-Lo, mas só até onde for confortável. Afinal, negar a si mesmo não combina com a cultura da autoafirmação. É mais fácil reinterpretar, relativizar, ou simplesmente ignorar.
E é aí que a Literatura voltou a me ensinar algo valioso: a verdade, quando é profunda, nunca vem sem desconforto. E a Bíblia, sendo a verdade revelada, não veio para nos agradar — veio para nos transformar. A Literatura me treinou para escutar vozes difíceis, para enfrentar o que não entendo de imediato, para reconhecer simbolismos e camadas. A Bíblia me ensinou que toda essa busca só faz sentido se, ao final, eu estiver disposta a ser moldada — não por minhas ideias, mas pela vontade de Deus.
No fim, a Palavra de Deus não se dobra ao nosso entendimento — é o nosso entendimento que precisa se submeter a ela. E a Literatura, com sua riqueza simbólica, sua pluralidade de perspectivas e sua paixão pelo que é humano e imperfeito, me ensinou a ler não só com os olhos, mas com o espírito desperto. Porque questionar com humildade é o primeiro passo para crer com maturidade. E crer de verdade é estar disposto a ser desconstruído — não pelo mundo, mas por Deus.
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